29 janeiro 2011

Papai e Mamãe Ensinaram-me Assim


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PAPAI E MAMÃE ENSINARAM-ME ASSIM


Era o ano de 2011 e Carlinhos tinha apenas sete anos. Sempre disposto a ajudar seus pais – lavar o carro, a louça e até às vezes, passava um pano umedecido na casa que acabava ficando um cheiro de cachorro molhado e deixando sua mãe furiosa.
Estava na segunda série e mal sabia ler e escrever, de fato não era muito para os estudos e sempre estava disposto aos trabalhos mais práticos. Não era o mais bonito, nem o mais forte e muito menos era o mais alto de sua turma. Era um garoto qualquer, igual a muitos outros garotos quaisquer.
Juliana era o nome da menina mais bonita da classe. Tinha os cabelos longos de um castanho louro e os olhos verdes. Branquinha, era sempre cobiçada pelos garotos. Carlinhos estava apaixonado, no entanto, achava que não tinha muita chance com ela.
Aos domingos, adorava ir ao campo ver seu pai – um rapaz de vinte e seis anos – jogar bola. Adorava futebol, mas gostava também de vôlei e de natação, apesar de não saber nadar. Contudo, Carlinhos era sempre repreendido, tanto pelo pai quanto pela mãe, quando jogava vôlei: diziam que não era esporte de macho.
Certo dia, pediu para ser matriculado na natação em um programa esportivo oferecido gratuitamente em sua cidade, mas seu pai disse que na natação só tinha viadinhos e perguntou ao filho se ele gostaria de ser considerado uma bichinha e é lógico que Carlinhos disse que não. E foi dessa forma que aquele garoto deixou de ser um grande nadador.
Era sábado à tarde, quando sua mãe – que acabara de fazer vinte e dois anos – surpreendeu-o lendo um livro infantil cujo conteúdo era composto mais por figuras do que enunciados – era uma história de fantasia. Carlinhos levou um belo xingo.
Adorava também ajudar o pai a consertar a moto velha e achava muito interessante todas aquelas ferramentas. Adorava ficar pela rua, nos finais de tarde, jogando bola. Uma vez, foi com o pai a um boteco, no bairro onde morava, comprar umas cervejas e conheceu alguns amigos de seu pai – um deles ainda cursava o supletivo.
_ Ih ae jow?! Belezinha véio! – Pai de Carlinhos cumprimentou os seus três amigos.
_ Fala ae seu fruta! Fiquei sabendo que você casou meu. Tava onde com a cabeça maluco? – Perguntou um dos amigos.
_ Pow mew, a mina ficou grávida véio. Ae já viu mew! Esse aqui é o meu meninão véio! – E apresentou Carlinhos que estendeu a mão para um aperto. Estava meio envergonhado, mas nada que fosse exagerado ou demais.
_ E ae muleke! Firmezinha contigo?
_ Beleza... – Carlinhos respondeu meio tímido.
_ Oh jow, esse muleke não é filho seu não véio. Você é feio pra caralho maluko! – Riram todos.
Foi quando Carlinhos foi questionado por um dos amigos de seu pai:
_ E ae muleke tah pegando muita mina?
Seu pai riu e ele também. A diferença era que seu pai ria inflado e ele ria corado.
_ E ae já comeu uma já? – O outro questionou ao garoto e seu pai logo respondeu por ele.
_ Não, que isso jow! Ele só tem sete anos. muito cedo, quando tiver uns dez já pode já! – E riu.
_ Ah muleke!!! – Exclamou o que fez a pergunta anteriormente.
Carlinhos era um garoto feliz e adorava seus pais e sua vida. Passava o maior tempo na casa da sua avó que morava perto. Almoçava todos os dias lá. Sua mãe não costumava fazer almoço.
Certa vez, Carlinhos estava com a avó quando seu pai foi buscá-lo e o encontrou lavando a louça para a senhora que não se sentia muito bem. Seu pai discutiu por colocarem seu filho para lavar louças e quando chegou em casa, Carlinhos levou uma surra.
_ Não quero você lavando louça não seu porra! Da próxima vez arregaço com você! Tá me ouvindo?! Filho meu não fica fazendo serviço de mulher!!!
E Carlinhos cresceu. Saiu de casa cedo também – com dezoito anos – e foi morar com uma moça que se mudara, não muito tempo, para o bairro onde morava.
Seu pai entrou para o tráfico quando Carlinhos tinha quatorze anos e falecera quando ele tinha dezessete. A mãe de Carlinhos começou a ficar muito doente e passou a precisar da ajuda de terceiros.
Carlinhos mudara-se várias vezes e morara com várias mulheres. Tinha algumas por esposa e outras apenas para ter como foda-fixa. Até que encontrou uma que fizera sua cabeça e apaixonou-se por completo. Casou-se para valer aos trinta e sete e teve três filhos.
Os anos se passaram cheios de autos e baixos, vitórias e derrotas e a única coisa de que sua esposa reclamava era o jeito machista do marido.
Carolina, a mãe de Carlinhos, fora morar com o filho, depois de alguns anos por forças maiores. Inexplicavelmente, depois da morte do marido, passou a ter problemas psicológicos. Não era muito fácil e nem seu filho tinha grande poder aquisitivo, mas a amava mesmo assim e Carolina ficou com eles por quase três anos.
Cuidar de idoso é uma função que requer muita paciência e muito carinho. Coisa que sua nora não tinha e de tanto reclamar para o marido, fez com que esse também perdesse a sua paciência.
Carlos odiava ser chamado de filho da mamãe ou de qualquer coisa que colocasse em dúvida a sua masculinidade. Nunca recusara transar com mulher alguma por achar que homens machos de verdade não negam fogo. E com a sua esposa chamando-o de banana, frouxo, trouxa e filho da mamãe e por questionar se ele passaria o resto da vida cuidado de uma velha e por sempre afirmar que ele precisava educar seus filhos e fazer deles homens e mulher de verdade, Carlos acabou internando sua mãe em uma casa para idosos.
Carolina tinha 62 anos e nem era tão idosa assim. Parecia saber o que ele fizera. Ficou muito triste. Nos três primeiros meses, chegou a receber visitas, mas vira seus netos apenas mais uma vez. Depois disso foi esquecida e abandonada.
Carlinhos que crescera e já estava quase à idade para também ser deixado em um asilo, pagava mensalmente à casa onde abandonara a mãe.
Carolina viveu por mais seis anos e durante esse tempo, fora mal tratada, sofreu agressões, ficou dias sem tomar banho e comer, apanhava quando defecava no lençol, já que ficava a maior parte do dia deitada e nua. Surgiu até uma grande ferida próxima ao seu ânus por não haver uma higienização adequada.
Hoje estamos em 2059. Carlos tem cinqüenta e cinco anos de idade, estudara e mudou de profissão. O comércio no qual vende seus produtos mudara bastante e está muitíssimo competitivo. É dia de culto e mais uma noite de trabalho e arrecadações. Sua esposa também trabalha com ele e juntos têm a missão de levar o Bem às pessoas e, por um programa televisivo, Carlos ressalta e salienta os importantes valores morais e a honra de ser um verdadeiro homem e homem de bem.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 28/01/2011
Código do texto: T2758495



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20 janeiro 2011

O Menino do Quarto "Escuro"

imagem por Robert Frank "Quarto Escuro 01"
disponivel em: 
http://www.flickr.com/photos/robertfrank/368995427/in/photostream/


O MENINO DO QUARTO "ESCURO"

Estava escondido em um quarto escuro. Escondia-se debaixo da cama e sobre ela havia alguns livros abertos, papel branco e uma caneta.
O chão era simples, rústico igual às paredes e não havia muitas mobílias naquele cômodo.
Ele parecia estar muito amedrontado, chorava e talvez em sua mente passasse apenas a imagem de sua mãe, a única pessoa a quem ele pudesse estender a mãos.
Pessoas aproximavam-se com pisadas fortes, pareciam estar enfurecidas. Gritavam muito e também xingavam aquele menino. Entraram arrebentando a porta do quarto fazendo um grande barulho. Derrubaram uma pequena prateleira de livros que estava em um canto de uma das paredes, chutaram uma cadeira e desarrumaram o lençol.
Ele ficou ali embaixo da cama, segurava o choro para não o ouvirem. Fechou os olhos e no mesmo instante veio a imagem de Cristo e logo a de sua mãe e de seus irmãos. Desejou profundamente – tão fundo que seria impossível qualquer homem mensurar a profundidade – estar próximo de algum amigo ou alguém que o pudesse escondê-lo.
_ Ah! Então você está ae! – Um homem exclamou com uma voz rouca e muito exaltada. Puxou-lhe pelos cabelos e tirou-o do seu esconderijo.
Antes mesmo que pudesse se virar, aquele garoto levou vários murros nas costas e mais dois rapazes se aproximaram e começaram a chutá-lo. Sua mãe estava em pé ao lado da porta e chorava olhando aquela cena.
Levantaram-no e deram um soco no rosto. Estava com muito medo e não sabia para quem pedir ajuda. Levaram-no para fora da casa e o jogaram no meio da rua de barro.
Havia muitas pessoas, e traziam pedras nas mãos. Próximo havia também algumas árvores e tinha frutos nelas, mas não deu para ele reconhecer que frutos eram.
Ninguém se calava e, em meio aquela gritaria, ele olhava para aqueles rostos desfigurados e cheios de ódio, reconheceu um amigo – o seu melhor amigo. Estendeu a mão em sua direção suplicando ajuda.
_ Você conhece ele? – Uma mulher perguntou raivosamente.
_ Não. Não senhora. – Respondeu o outro menino falando muito baixo. E olhou para o amigo com os olhos de quem pede desculpa por não pode fazer nada.
Começaram a atirar pedras naquele filho de Deus caído no barro. Ele gritava do fundo de sua alma. Enquanto sua mãe escondia o rosto para não ver ou talvez, para não ouvir.
_ Pai! Pai! Me ajuda! Mãe! Mãe!!!
Não havia muitas pedras e quando elas acabaram, aquelas pessoas usaram as próprias mãos e os pés. Agrediram aquele menino até a morte. Enquanto faziam o que fizeram, gritavam o mesmo Nome a quem o garoto deveria estar pedindo ajuda. E a esse Nome era dedicada tal ação.
Realizaram tal ato sem derrubar, exteriormente, uma única gota de sangue. Não deixaram um único hematoma externo e nem causaram, se quer, uma fratura (de ossos).

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 20/01/2011
Código do texto: T2741342



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16 janeiro 2011

Ah! Ai Também Não Né...


imagem google


AH! AI TAMBÉM NÃO NÉ...

Queriam muito fazer uma viagem, não pretendiam sair do Brasil, queriam apenas curtir um pequeno passeio para comemorarem o noivado. Pensaram em ir para Salvador, mas acharam que Recife seria o melhor destino.
Márcio e Simone estavam juntos a cerca de seis anos e acabaram de noivar. Trabalhavam ambos na cidade mais rica do país, no entanto, em empresas diferentes. Ela era gerente de loja e ele, um técnico em informática.
Não agradava a eles aquele sotaque carregado dos pernambucanos e isso não significa que os odiavam, mas diziam para si próprios que jamais namorariam alguém de lá. Primeiramente, achavam o sotaque estranho e tinham vergonha só de pensar o que familiares ou amigos pensariam – não que eles dissessem alguma coisa – e acreditavam que a maioria dos nordestinos eram mesmo pessoas sem um grande conhecimento.
Com tudo pronto para a viagem, foram até o aeroporto, e sem entenderem muito a logística daquele estabelecimento custaram a se localizarem e saberem o que e como tinham que fazer.
Fizeram um pacote turístico de quatro mil reais e estavam levando cerca de dois mil com eles. Ficariam sete dias e conheceriam algumas praias do litoral pernambucano. Estava incluso no pacote uma pousada de frente para o mar.
Um lugar espetacularmente lindo. Praias de areais bancas e água azul, algumas até transparente. Diferente de muitas praias no estado onde moravam; areia amarronzada e água quase sempre escura. Recife era mesmo um paraíso, só percebiam o contrario quando algum conterrâneo abria a boca para oferecer lembrancinhas, comes e bebes ou quando ouviam aquele “oxente” carregado.
Pagaram cerca de dez reais em uma pequena porção de caranguejo na praia e acharam barato até. Contudo, desconheciam o árduo trabalho feito pelos homens no mangue. Sabiam que era no mangue onde se achava os caranguejos, mas não tinham ideia das dificuldades e dos riscos de se trabalhar no manguezal e ignoravam também o preço recebido pelo trabalho feito. Realmente não sabiam que os trabalhadores do mangue tinham uma jornada longa e depois de um dia inteiro, muitas vezes, conseguiam poucos crustáceos que eram comprados, principalmente, por donos de pousadas pelo valor de um real quatro caranguejos.
Adoraram ficar uma semana em Recife, e já pensavam em voltar em breve. Tinham agora, curiosidade em conhecer o litoral da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Dizem que as praias do Ceará são realmente divinas.
Estavam de volta à grande metrópole depois de uma semana de puro descanso, vistas maravilhosas, culinárias, bebidas, fotos e transas bem safadas no quarto da pousada.
Foram recebidos com saudade por seus familiares e amigos próximos que, curiosos, perguntavam como foi o passeio e como era Recife.
_ Nossa, um lugar maravilhoso. Não tem palavras. Até conhecemos o mangue, passamos bem perto de barco, lugar lindo e muito misterioso, só é ruim os homens que trabalham lá, ficam na lama o tempo todo. Eu só não entendo como um lugar tão lindo e gostoso como aquele e ainda tem pessoas querendo vir pra cá. – Contou Simone.
Uma expressão engraçada foi notável no rosto de poucos amigos do casal e um rapaz retrucou rindo.
_ Pois é, acho que da próxima vez, vocês poderiam ficar sete dias no meio do sertão não acham? Ele também tem suas belezas.
Márcio riu e logo depois respondeu:
_ Ah, ai também não né...

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 16/01/2011
Código do texto: T2732818



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07 janeiro 2011

A Praça

Muro - disponível no site Bahia Notícias


A PRAÇA

Era uma grande área verde que, aos poucos, fora diminuindo e na medida que a civilização avançava, perceberam que aquela área seria extinta e antes mesmo que a primeira casa fosse construída do outro lado da rua, fizeram do lugar uma espécie de praça. Dessa forma não seria fácil adquirir um terreno bem ao lado. Um lugar muito agradável e muito bonito atraia muitas pessoas durante o dia e à noite. No entanto o seu público diurno era um e o noturno era outro ou o mesmo, mas com objetivos diferentes.
Durante as manhãs, tardes e inícios de noites, famílias inteiras frequentavam a praça, alguns corriam, outros malhavam e havia até uma quadra na qual raramente não deixava de ocorrer algumas partidas de futebol, vôlei, basquete e até handebol. Durante à noite mais adentro, até à meia noite, alguns carros ficavam parados e de um lado, havia gigolôs e do outro lado da praça, ficavam algumas prostituas. Havia poucas casas muito próximas à praça, mas mesmo tendo que caminhar alguns poucos minutos, todos adoravam visitá-la.
Todos também tinham conhecimento do que existia mais atrás da área verde em uma área meio que isolada, mas integrada a ela. Um terreiro que discretamente ocupava um espaço quase não percebido por moradores de outros bairros que só sabiam do fato se chegassem ao próprio lugar ou se algum frequentador os dissesse. Raramente se via as pessoas que iam ao terreiro e muito mais raramente se via as pessoas vestidas de branco. Era mágico como também não podia ouvir os tambores batendo, mas em noite muito silenciosas – o que era quase impossível acontecer naquele bairro quase cidade – dava-se para ouvir longe alguma coisa.
No início, aconteceram alguns conflitos entre aqueles que iam ao terreiro e alguns moradores e frequentadores diários da praça. Criticavam todos aqueles que levantassem bandeira a favor do espaço discriminado. A procura pelo sexo que acontecia durante as noites incomodava algumas pessoas e a maioria delas eram as mesmas que se incomodavam com a ideia do terreiro, no entanto, incomodo com esse era maior do que o incomodo com o aquele. Alegavam que as pessoas que frequentavam e moravam ali perto, eram pessoas de bem.
Após verem que nada influenciava no convívio entre todos e que suas famílias podiam ir àquela área de lazer e lá ficarem por horas, ninguém quase se lembrava do terreiro meio escondido, nem ele virava assunto. Era visto como uma parte misteriosa da praça e até visto com graça por alguns moradores que chegaram até conhecê-lo por curiosidade.
A praça era charmosa e tinha o dom de nutrir nos humanos um carinho por ela. Sua fama parecia ser liberada junto ao oxigênio nos topos das árvores e levada pelo vento que percorria até os outros bairros gritando por entre as casas e prédios e logo vinham visitantes curiosos e carentes por um lugar bonito, calmo e familiar. Contudo, a praça criava sua fama e algumas pessoas criavam outra para ela. Também se ouvia a respeito das coisas que aconteciam durante as noites, e muito se falavam nos bairros um pouco mais distantes, sobre o terreiro e histórias a ele eram acrescentadas, de modo que percorria em alguns lugares e entre alguns grupos, que o local era uma bagunça geral, frequentada apenas por prostitutas, homossexuais, travestis, viciados, feiticeiros e macumbeiros.
Certa manhã, uma das moradoras próxima a praça, voltava correndo depois de uma hora de exercícios matinais, quando um grupo de adolescentes moradores de outro bairro começaram a ofendê-la chamando-a de macumbeira e bruxa. Coisa que a magoou, mas preferiu não duelar com aqueles garotos e garotas.
Tal cena acontecia, não com muita frequência, mas fazia os mais antigos frequentadores da praça a questionarem o porquê daquilo e não entendiam porque pessoas que nem conheciam o local, sua história, nem mesmo morava próximo dali, incomodavam-se tanto com o terreiro e seus frequentadores ou achar que todos que freqüentavam a praça eram da mesma religião.
O que era um lugar de prazer virou um lugar de problemas. Tem até quem teve problemas com relacionamento por saberem que fulano ou fulana frequentava ou gostava de ir à praça às vezes. Houve até em uma tarde fria, o pior dos episódios que os vizinhos presenciaram. Comerciantes das proximidades frustraram a tentativa de agressão a um casal – ele de 28 e ela de 26 e grávida de cinco meses. Alegavam que ela estava grávida do filho da besta.
As pessoas ainda frequentavam a praça durante o dia, à noite, esta ficava quase deserta, já não iam mais prostitutas e gigolôs. Dos moradores indignados, poucos aproveitavam tal situação para não deixarem de fazer seus exercícios à noite.
Jogavam pedras, quebraram algumas lâmpadas que davam um toque todo romântico e misterioso à praça e algumas tentativas de violência física e verbal levaram as autoridades a tomarem providências: abandonar os cuidados para com o espaço – claro que não disseram isso à população – mas acreditavam que se a praça ficasse feia, ninguém – além dos viciados e prostitutas viciadas – frequentaria o lugar e isso resolveria muitos problemas.
A população não se deixou vencer e eles próprios, em mutirões, faziam algumas limpezas e não deixavam o capim crescer e avançar. E tendo conhecimento de tal falto, o prefeito mandou fechar o terreiro, demolir seu espaço físico e orientou a sua construção em um lugar mais apropriado segundo o documento oficial apresentado. Mandou também derrubar as árvores e cercou a praça construindo um grande muro.
Hoje, estão no início do preparo do terreno para construir o que parece ser um conjunto habitacional e no muro ainda está a frase em tinta preta desbotada que fora pichada semanas depois do fechamento da praça: "Justissa divina pode tarda, mas não falhia!"

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 07/01/2011
Código do texto: T2715850



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06 janeiro 2011

Enferrujada Pela Maresia

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ENFERRUJADA PELA MARESIA
Ela mora na grande cidade e ele sempre morou no litoral. Conheceram-se pela internet, nessas salas de bate papo. Logo trocaram números de telefone celular e endereços para mensagens instantâneas também pela internet.
Sueli é o seu nome, trinta e três primavera, estatura média, branca, olhos castanhos escuros, cabelos de um louro castanho ou castanho louro propriamente dito. Acha-se um pouco acima do peso, mesmo com todos seus amigos e familiares afirmarem que está ótima e não tem o que emagrecer. Trabalha como vendedora em alguma loja na 25 de Março e está prestes a tirar suas férias.
Marcos é o nome dele, trinta e oito verões, branco da pele queimada, olhos esverdeados e cabelos lisos. Não tem os músculos inchados e nem murchos, um homem atraente e galanteador. Dono de seis quiosques e três imóveis – dois deles alugava para turistas – o maior deles é feito de sua moradia, esta por sua vez, localiza-se próximo a outra praia não muito freqüentada pelos banhistas.
Um ciclo de quatro semanas percorridas por completo. “Falavam-se” todos os dias e preferiam usar, com mais freqüência, os sms, já que são mais baratos do que a ligação de celular. Já se atendem por apelidos e outro termos banalizadamente carinhosos – “’amore’, amor, meu anjo, Su, Má e qualquer coisa que possa florescer das mentes inundadas pela paixonite cegante.
Como quase todos os seres vivos, os humanos também têm suas necessidades fisiológicas e uma delas é a satisfação por meio de terminações nervosas localizadas em pontos estratégicos do corpo. Aparentemente essa necessidade é mais sentida pelos humanos, em especial o homem, mas quando ficam por um longo período sem a satisfação provocada e realizada junto ao outro, todos passam a tê-la na mesma proporção sem moralismos. Logo na primeira semana de contatos, já conversavam sobre satisfações e algumas formas de consegui-las.
Com uma semana de comunicação e sem saber muito sobre tecnologia, Sueli comprou uma webcam a pedido de Marcos cuja sua, às vezes, era ligada para que sua donzela pudesse vê-lo. Depois de instalada, conversavam ambos com suas “cams” ligadas e após alguns dias, no embalo das conversas sobre satisfação, Marcos mostrou seu pênis e ela sua vagina. Masturbaram-se até. A “cam” dela não tinha uma imagem muito definida e tal fato fez com ela descrevesse detalhadamente dando cor, volume, aromas, textura.
Como já estava virando costume, conversavam quase todos os dias, também, pelo telefone.
_ Nossa, você é muito linda.
_ Obrigada, mas não sou tão bonita assim.
_ É sim, uma moça para casar.
Ela riu desconcertada.
_ Que foi que você riu?
_ Nada, é que você é muito charmoso.
_ Sou nada, você vai ver quando vir pra cá. Cuidado para não se assustar.
_ Já te vi pela webcam e na verdade eu te achei muito bonito.
Ele riu.
_ Você também. E que xoxotinha linda que você tem.
_ Assim você me deixa envergonhada.
_ Adoro essas com vergonha, eu sei bem como deixá-las à vontade.
Sueli não gostou muito de ouvi as palavras “deixá-las”. Sentiu certo desconforto, no entanto, preferiu não dar muita atenção para.
_ Sabe é? Mas eu sou muito tímida.
_ São dessas que eu gosto. Alias você não me disse o que achou...
_ Achei? Achei o quê?
Ele riu um pouco sem graça: _ Você sabe, eu vi você e você me viu, entendeu?
Depois de rir mudamente Sueli respondeu exatamente o que Marcos queria ouvir:
_ Eu achei muito bonito, e olha que sou chata pra isso. – Ressaltou algumas características e adjetivou da forma que quase todos os homens adoram ou adorariam ouvir alguém falar sobre seus orgulhos ou nem tanto orgulhoso assim.
O tom de voz dele mudou, ficou mais animado, mais inflado e ela percebeu, mas não disse nada e só continuou a conversa que durou cerca de treze minutos.
_ Olha Su, eu estou curtindo bastante você, estou doido para você passar o feriado aqui comigo para gente se conhecer melhor e sair do virtual.
_ Claro que vou, estou muito ansiosa para conhecer meu futuro homem.
Silêncio
_ Alô? Está aí?
_ Estou sim minha deusa, acho que a ligação está cortando. Vou desligar ta bom? Mais tarde agente se fala mais pela net.
_ Está bem.
_ Tchau minha linda, gosto muito de você viu?
_ Eu também estou gostando de você.
_ Tchau.
Três dias depois, um domingo, Sueli saiu de férias e coincidentemente na semana do feriado prolongado, próxima quinta. Marcos e Sueli conversaram bastante pela internet e resolverem detalhes para o primeiro encontro deles. Ele a esperaria na rodoviária e ela passaria o feriado e o final de semana todo com ele.
Ele a esperava de carro, um palio branco. Ela sorriu, ele permaneceu sério até que ela chegasse mais próximo para então sorrir e cumprimentá-la com um rápido beijo. Parecia que ela não era exatamente o que ele esperava, mas sabemos e ouvimos dos homens que eles não dispensam, uma vez, que tal ação representa uma vergonha tamanha para muitos que se esforçam cansativamente para achar que conseguem chegar ao pico da montanha ou até a nascente do rio.
Era aproximadamente onze horas da manhã. O litoral estava cheio de turistas e foram juntos comer em um dos quiosques de Marcos próximo à areia da praia e depois foram para casa dele próxima a outra praia menos freqüentada por banhistas. Estava muito quente, e Sueli ficou encantada com o imóvel do seu suposto namorado, ficou a maior parte dos primeiros momentos na sala, um espaço grande, com um grande e largo sofá, algumas almofadas sobre o chão, um grande e aveludado tapete branco, uma imensa janela de vidros para a praia quase deserta. Por ela podia ver-se um ajeitoso jardim próximo a vidraça, uma baixa cerca de madeira e mais ao fundo, uma grande montanha coberta de verde e aos seus pés uma areia cor de pele sobre onde ondas vinham e iam num balanço leve e delicado e um grande coqueiro quase curvava-se ao lado oposto da montanha já um pouco mais próximo da residência. Sueli, ali, parada em pé, encantada com a paisagem que via, ainda estava um pouco desconcertada e pensava o quanto estava sendo louca e imatura. Esperava pelo término do banho de Marcos.
Ele chegou enrolado em uma toalha branca, sem camisa com os cabelos molhados. Pediu desculpas pelo traje e se justificou dizendo que esqueceu de levar sua roupa para o banheiro já que não tem o costume de fazê-lo. Ela ficou meio sem graça e suas bochechas coraram um pouco. Marcos dirigiu-se para o quarto, mas logo fez uma expressão de quem acaba de se lembrar de algo e foi para a cozinha do lado oposto da sala sugerindo à Sueli que ficasse a vontade e perguntando se ela queria beber alguma coisa. Ele trouxe uma latinha de refrigerante e na outra mão trazia uma pequena garrafa de cerveja fechada. Entregou a latinha à moça e abriu a garrafa com a mão. Ela podia ver o volume pela toalha que estava, naquele momento, um pouco molhada e não sabia se olhava para o peito normal com pouco pelos, ou para toalha ou para seus olhos esverdeados. Era nítido que ela estava sem graça.
Um surpreso beijo veio à tona, estavam ambos em pé. Ele passou um dos braços pela cintura dela e a puxou contra o corpo dele. Ela que segurava a latinha com uma das mãos a frente do corpo fez ele se arrepiar com o gelo do objeto contra o peito. Riram e ele após colocar sua garrafa sobre um dos móveis que estava próximo, pegou da mão dela a lata e a colocou sobre o mesmo móvel. Beijavam-se e com suas mãos fortes segurava a nuca dela. Sentaram no sofá e as pontas dos dedos de ambos percorriam os dois corpos e acariciavam um ao outro de forma honesta. Entregavam-se um ao outro. Logo ficaram despidos e beijaram-se mais e ela passou seus lábios em todo o corpo dele e ele fez o mesmo no corpo dela. Estava quente, já estavam deitados no sofá, ele embaixo dela, segurava seus cabelos e beijava sua boca. Ele se sentou e ela ficou no colo dele de frente. Observavam o corpo um do outro e juntos passaram um início de tarde romântico e realmente carinhoso. Amaram-se de forma que se tornou eterno nas lembranças de Sueli que nunca fora tratada de tal maneira, com tanto carinho, respeito, desejo e amor. Cochilaram enquanto o sol quente banhava o mar que banhava a areia que cumprimentava o coqueiro que olhava para o jardim onde as rosas, flores e o capim cochichavam.
Naquele mesmo final de tarde, foram até a praia e ficaram juntos assistindo ao por do sol. À noite, fizeram amor novamente, mas de uma forma mais libidinosa. Ela atendeu aos pedidos dele, enfiar até a garganta, ficar de quatro. Ele atendeu aos pedidos dela, lambê-la, dar batidinha no rosto dela, lambuzá-la o rosto. Esse último desejo causou-lhe surpresa, mas o atendeu todo excitado e contente pelo pedido. Juntos fizeram quase tudo o que podia vir de suas mentes, suas fantasias e tal cena repetiu-se também nos próximos dois dias – sexta-feira e sábado.
Ela ficou desapontada no sábado à noite quando Marcos disse que ela teria que voltar para a grande cidade no domingo pela manhã, os motivos apresentados por ele foram relacionados ao trabalho dele e uma viagem ao litoral extremo norte. Sueli percebeu que não tinha o que fazer a não ser voltar. Depois de arrumar suas coisas e de conversarem um pouco tentou ser tratada como foi pela primeira vez que chegou ali. No entanto, não conseguiu sentir que aquele ato fosse idêntico ao primeiro. Mas se sentiu realizada na medida do possível e teve dois orgasmos e um deles foi quando Marco a masturbava enquanto brincava de se esfregar em suas nádegas. Sueli recusou um dos pedidos dele que insistiu umas três vezes, mas em vão.
Acordaram às cinco e meia da manhã, ela foi levada à rodoviária, beijaram-se rapidamente e se despediram.
_ Gostei muito de te conhecer Su.
_ Eu também, estou louca para te ver novamente.
_ Nossa nem me fala, só de imaginar você rebolando na minha vara de novo hein.
Ela riu e ficou sem graça:
_ Eu adorei aquela nossa primeira vez.
_ Eu também, algo especial não é? Um momento especial com uma mulher especial.
_ Quando nos veremos novamente?
_ Olha eu vivo um pouco na correria, mas vamos nos falando.
Despediram-se. Ela entrou no ônibus e pegou a estrada. Ele voltou para casa, tirou sua calça, depois a camiseta e só de cueca voltou a deitar para dormir mais um pouco. Mais tarde, foi à praia, deu um mergulho, comeu em dos seus quiosques e flertou um pouco com uma linda turista de pele negra com curvas bem salientes, cabelos todo em finas e cumpridas tranças. Ela ficaria só mais algumas horas no litoral, mas era o suficiente para juntos satisfazerem-se por terminações nervosas.
No mesmo dia, mais tarde, Sueli tentou ligar para Marcos, mas seu celular dava fora de área. Não o encontrou na internet. No dia seguinte, o telefone dele tocou, mas não atendeu. Sueli já entendia o que acontecia e sentiu raiva de si mesma e de Marcos. Quando pela força da teimosia, conseguiu falar com seu amado.
_ Oi Su.
_ Oi amore, tudo bem?
_ Tudo sim e com você?
_ Estou bem, estou tentando falar com você esses dias, mas...
_ Olha minha deusa, agora estou um pouco embaçado aqui com um problema em um dos quiosques. Posso te ligar depois?
_ Pode sim, claro. 
Sueli tortura-se por achar que deveria ter deduzido isso ou aquilo, que deveria ter feito isso ou não ter feito nada. Que poderia ter mais beleza ou talvez um pouco mais de dinheiro. Por vezes, queria ter nascido homem. E ainda espera pela ligação.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 01/01/2011
Código do texto: T2703054



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O Casebre Abandonado Atrás do Parque Ecológico

"Fotos de um casebre abandonado" por Pedrooo



“Tento rir de tudo e esconder as lágrimas porque
garotos não choram.”
– The Cure.



PROÊMIO
Caro leitor, a história que se realiza por meios de palavras nos próximos pedaços de papel, inexplicavelmente, brotou, há quinze dias, em minhas idéias, atrapalhando-me na escritura de outro conto de fantasias. E você deve estar perguntando-se que tipo de conto carece proêmio.
Tentei no que pude abortar esse meu filho. Digo filho porque essa é uma expressão usada por um poeta amigo meu. Segundo ele, todo texto que escrevemos, na verdade, é um filho nosso porque os parimos e alguns são – no termo figurativo da palavra – dolorosos.
A idéia desse conto não me deixou por um só instante e não consegui dar leveza à situação que se sucedeu e nem consegui transcrever fielmente as falas das personagens. Confesso que tenho grande dificuldade com os discursos diretos e as transcrições.
Quero primeiro descartar e que descartem qualquer semelhança com pessoas de histórias reais. Não tenho e nunca tive a pretensão de tornar alguns seres do nosso dia-a-dia em personagens de contos, seria muita babaquice minha fermentar seus (deles) egos. E afirmo que esse proêmio não tem característica de justificar coisa alguma, acredito que nenhum conto ou poema careça de uma justificativa.
E para não deixar esse prólogo mais inútil do que já está – se isso for possível fazer – quero avisar que qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.
Samir S. Souza.
12/12/10

1

Se arrancassem seus olhos e os pendurassem no teto, viriam agora um grupo de seis jovens, quatro rapazes: dezesseis, dezoito, vinte e quatro, vinte e sete anos e duas moças ambas de vinte e seis.
O criador do espetáculo, assim como costumava chamar, em seus pensamentos, aquela situação que apenas acabara de começar, era Renato, um belo rapaz, magro, estatura média, branco, cabelos negros e encaracolados, olhos castanhos claros de aproximadamente vinte e dois anos.
Renato sabia que não era mais o garoto que costumava ser e, sabia também, que o deixara para trás há algum tempo, no entanto, não sabia exatamente o que se tornara. Seus amigos o viam como um indivíduo espetacularmente singular e tinham sua imagem assemelhada a um provável futuro ganhador Nobel da paz.
Ouvimos de vez em vez que os opostos se atraem e que há pessoas que são simplesmente boas e outras más e que o amor pode, em segundos, tornar-se ódio. É bem provável também que o homem tem a capacidade de ir aos extremos em segundos e que talvez, apenas a força divina possa controlá-lo. Acredito que uma pessoa boa não é apenas uma pessoa boa, da mesma forma que a parte frontal do meu corpo não é igual à parte traseira. Uma pessoa extremamente boa guarda em seu abismo interior a mesma pessoa extremamente má na mesma proporção de sua bondade e vice e versa. Renato tinha em seus olhos uma divindade que não raramente assustava. Aquele castanho claro apaixonante era, por vezes, tão maldoso na sua beleza.
Renato sempre teve pessoas, ao seu redor, que duvidavam da sua masculinidade, sempre teve pessoas que o nomeavam animalescamente, mas nunca deu muita importância para o que achavam, apesar de tentar esconder suas feridas que pareciam ser incicatrizáveis. Sempre haveria alguém disposto a não deixá-las secarem.
Os fatos que ainda ocorrerão de forma, talvez cruéis e muito bem calculados, tiveram seu início há quatro meses. Na verdade o início ocorreu há muito tempo. Já muito tarde, nas proximidades de uma agitada e rica avenida, andavam com alguns amigos Renato e seu irmão Gustavo quando um grupo de aproximadamente oito pessoas, entre elas duas moças, começaram coletivamente a agredi-los e gritar palavras que os insultavam.
Tal fato mudou o cotidiano de Renato e seu irmão que ainda estava na UTI de qualquer hospital público na companhia de sua mãe que, a essa altura, já se tornara uma morta viva. Seus pais, especialmente seu pai, nutriram um sentimento de raiva e ódio por pessoas que cultivavam a violência gratuita e enxerida. Ele que nunca deu muita importância ao filho pela sua condição sexual, agora estava disposto a enfrentar aquela matéria mais sólida e inquebrável quanto à lava endurecida de um vulcão.
Inês, a mãe de Renato, sempre ouvira do marido que ele se preocupava com o filho e por isso não agradava a idéia do garoto não ser ou fazer exatamente o que queria que fizesse, as coisas que sonhou para seu filho e seus desejos que seu filho poderia tornar reais. À Inês também não agradava a idéia de ter a certeza que no futuro não teria um neto, filho de um de seus filhos, mas tal frustração não a impedia de amá-lo. Renato, no entanto, sabia que seu pai não se preocupava com ele, mas consigo próprio, não estava preocupado com o que poderia acontecer com ele e sim preocupava-se com as coisas maldosas pintadas de brincadeiras que poderia ouvir dos amigos da família, familiares e até dos vizinhos.  Renato teve certeza também, que depois das agressões sofridas, seu pai mudara totalmente a forma de pensar, só não tinha a certeza dos motivos daquelas mudanças.
Dalí, dois dias para frente, seria o que chamam de espetáculo da cidadania, a manifestação do desejo do povo. Renato teve ajuda de seu pai e de alguns amigos e uma amiga. Como a polícia ainda não resolvera o caso ocorrido entre ele e o irmão, decidiram então, por conta própria, por justiça própria, resolver.
As pessoas quando estão realmente decididas a alcançar suas metas e estão tão motivadas a isso, conseguem, em tão pouco tempo, descobrir coisas que parecem ser quase impossíveis. E como um milagre, e claro, com a ajuda de algumas informações concedidas no inquérito pela polícia, Renato e seu pai tornaram-se verdadeiros detetives e incrivelmente criminosos que ficam à espreita, prontos para o ataque no melhor momento.
Com a ajuda da combe branca de seu pai, levaram quase todos em um único dia, ficando assim, apenas dois para o próximo. Ficaram um pouco frustrados por não conseguirem pegar a gangue toda. Levaram-nos para uma casa escondida próximo ao parque ecológico do Tietê de onde seria muito difícil alguém escutar qualquer coisa.
Era uma casa de dois cômodos apenas, paredes de tijolo sem reboque, o chão de terra batida. Um dos cômodos era bastante amplo e parecia que a sua construção fora abandonada às pressas. Tinham as mãos e os pés amarrados, estavam todos apoiados, cada um, em um pequeno tronco de árvore. Apenas os dois jovens que foram levados por último, ainda estavam desacordados, deitados de rosto no barro avermelhado.
Foram colocados com certa distância uns dos outros, e se olhados de cima, suas posições formavam um grande C. Foram colocados dessa forma porque Renato queria que todos se olhassem. Subia uma poeira que dançava no ar e vestia os raios de sol que entravam pela janela que ficava na parede defronte para o grupo acorrentado.
Pedro, o pai de Renato, já havia avisado ao filho que apenas o ajudaria na captura, mas que o resto seria por conta do filho. Não queria ver o que estava para acontecer. Renato sabia que, apenas ele e três amigos, tinham coragem suficiente para prosseguir com aquilo.
Já estavam todos acordados e eram observados por Daniel, um rapaz negro, alto e forte integrante do grupo de Renato. Esse por sua vez, entrou no cômodo e apenas uma das moças o reconheceu. Tinha em seu rosto uma expressão de satisfação e autoridade, cumprimentou o amigo, ambos de modo muito másculos.
 Daniel e Renato tiraram as mordaças daqueles pobres jovens ricos e depois de feito, aquele se retirou do cômodo.
_ Sua bicha, você vai se foder, viado do caralho! – Gritou o mais velho do grupo, Miguel.
Renato riu.
_ Tira agente daqui, por favor! Não temos nada com sua vida... – afirmou uma das moças com um tom de voz amigável, educado e desesperado.
_ Socorro! – Gritou, suplicamente, o macho de dezoito anos.
Junto ao seu grito, começaram todos a gritar por ajuda e tinham em mente que seriam logo ouvidos, já que era de manhã. Enquanto gritavam, Renato pegou, em um gesto simples, um cabo de vassoura que estava encostado na parede a sua trás e apoiando-se a ele, sentou em uma cadeira de plástico que fora colocada de frente para o grupo que parecia naquele momento o público e o artista ou o rei com o cajado e os plebeus.
Ao perceberem que Renato não fazia nada a não ser olhá-los, pararam de gritar enquanto uma das moças começou a chorar e o rapaz de vinte e quatro anos começou a pedir ajuda a Deus. Ficaram olhando aquele rapaz de cabelos encaracolados e olhos castanhos claros e que, naquele momento, pareciam verdes devido à luz do sol que entreva pela janela e iluminava o chão a frente dele e dos pobres indivíduos feitos de reféns.
_ Vocês podem gritar a vontade, ninguém vai ouvi-los. Estamos longe da cidade, e mesmo se ouvissem qualquer coisa, não viriam ver, estamos no meio do mato. – Mexeu as sobrancelhas para cima e para baixo com um malicioso sorriso – E como está de dia e com o barulho do transito, fica mais difícil de ouvirem alguma coisa.
_ Seu viado filho da puta!
_ Bem, não sei se sou filho da puta e se eu for, não tenho preconceito contras putas. – riu.
Entrou Rafaela, a única amiga de Renato que tinha coragem para testemunhar tudo o que se passava e que ainda estava por passar.
_ Seu pai disse que qualquer coisa só avisar. Lá fora, estão o Daniel e o Digão.
_ Beleza, acho que por enquanto não vou precisar de ajuda. E aquele esquema lá fora?
_ O seu pai já deixou tudo pronto. Mas você não vai fazer o que eu acho que vai ne?
_ Não sei o que você acha. – Riu. Mas se for o que eu estou pensando, vou sim. Por quê?
_ Nossa, teria coragem?
_ E por que não?
_ Nossa, quero morrer sua amiga.
Riram ambos, enquanto recebia das mãos dela, uma mochila que aparentava estar pesada.
Depois de alguns minutos e muitas ofensas e gritos, Miguel exclamou várias vezes que pessoas como Renato tinham que morrer e que seu namoradinho era apenas um a menos.
_ Ele é meu irmão! – Retrucou Renato com voz áspera.
As moças se olharam como crianças que acabaram de quebrar o jarro da mãe e, após alguns segundos mudos, Miguel novamente se pronunciou raivosamente.
_ Agente deveria ter matado vocês, deveria ter enfiado uma lâmpada no seu rabo. Deveriam ser arrombados com tacos de beisebol.
Sem dizer palavra alguma, Renato dirigiu-se ao outro cômodo e podiam escutá-lo chamar por Daniel que veio logo em seguida e juntos entraram no cômodo onde estavam todos. Foram naquele momento, amordaçados novamente.
Daniel sentou na cadeira enquanto Renato abria a mochila que estava sobre uma velha pequena e quadrada mesa de madeira no canto esquerdo da parede. Os olhos daqueles seres amordaçados estavam regalados e tinham um brilho digno de admiração. Ele tirou um grande consolo de um marrom muito intenso.
Aquele objeto causou tamanho desespero nos rapazes que, humilhadamente, estavam meio que de joelhos sobre o barro. Tentavam gritar, mas suas amordaças impediam o desespero de sair de suas bocas e abafavam o grito.
Renato estava sério, seus olhos fitaram Miguel que também não tirava os olhos daqueles dois rapazes a sua frente e balançava com cabeça pedindo para que não fizessem o que ele estava certo de que iam fazer.
Com o consolo em mão, Renato dá a volta em torno de todos como se estivesse brincando de lencinho branco. Estavam todos muito assustados. Parou atrás de Miguel que tentava acompanhar Renato com a cabeça. Tinha também os joelhos amarrados e sentiu Renato agachar-se por detrás dele e com a duas mãos amarradas para trás, tentou segurar qualquer parte do corpo daquele terrivelmente ser gay que deixara o consolo sobre o chão e abria o cinto, botão e zíper da calça de Miguel.
Gritavam, ou pelo menos tentavam todos. Miguel já estava de nádegas sem proteção alguma.
_ Olha o pauzinho dele. Agora sei porque você tem tanta raiva de gays. – Riu e depois de uma descoberta, levou o tom de voz ao deboche e continuou: _ E ainda tem fimose, fala sério cara. É tão homem e nem se preocupa com isso. Mostra pra ele Daniel o que é um pau de verdade.
Daniel levantou-se e abriu o zíper, tinha um sorriso no rosto e colocou para fora, estava excitado o que deixou Renato surpreso e criou nele uma sensação de temor. Com o zíper aberto e seu conteúdo saltando para fora, aproximou-se do rosto de Miguel que teve em seu rosto o que ele nunca imaginou que teria e sentiu-o sobre os olhos e sobre o nariz. Fechava os olhos e tentar gritar, balançava muito a cabeça enquanto seus amigos viam tudo inquietos e certos de que o “viado” que eles agrediram não estava brincando.
Depois de gargalhadas e voltar ao seu lugar com o zíper fechado, Daniel sentou-se e ficou a observar calado. Renato acariciava as nádegas de Miguel que tentava insultá-lo e tentava em vão deixar as mãos de Renato longe dele. Sentiu um dedo fazer pressão e logo em seguida, em um ato brusco e violento, sentiu entrar-lhe aquele consolo.
Gritou e começou a chorar. Gritava como quem corta-lhe os dedos e junto aos seus gritos, seus amigos também gritavam, talvez por temerem que aquilo acontecesse a eles também. Sentia dolorosamente aquele objeto entrar e sair e sentiu por volta de três minutos.
Com o consolo em mão, Renato exibia-o como um troféu aos amigos de Miguel e após ficar frente a frente daquele homem que acabara de ter sua virgindade rompida, esfregou, em seu rosto, aquele instrumento ensangüentado. Sua dor deu ao seu rosto uma expressão de cansaço e o cheiro do sangue, misturado à fezes, inquietou o seu estômago.
Camila, uma das moças, observava e tinha em seu rosto a estampa do medo, mas não gritava e tentava, poucas vezes, livrar-se das cordas. Olhou seu amigo apoiar a cabeça no chão, parecia sofrer e parecia também não querer olhar para ninguém, era claro que estava envergonhado.
Renato tinha apenas mais três dias para acabar com tudo aquilo e sabia que cada dia que deixasse ser um novo capítulo, os riscos também aumentavam. Tinha apenas a preocupação de ser pego em flagrante.
Todos viram o desespero de Miguel quando ele viu uma pequena linha de sangue escorrer lentamente por entre as pernas. Em meio a choros e gritos, bradava palavrões e insultos a Renato, tentava ofender de qualquer forma que parecesse ser mais cruel e audível por meio da amordaça. Tentou levantar-se, mas seus joelhos amarrados o impediram.
_ Você quer me dizer algo? – Tirou sua amordaça e com a outra mão puxou seus cabelos erguendo seu queixo.
_ Por que isso? – Miguel questionou com um tom mais amigável.
_ Porque disso? Então você se acha no direito de sair batendo em qualquer um na rua só por suspeitar de serem gays e acha que isso é um direito que te foi atribuído? E mesmo se são gays ou não o que você e seus amigos têm com isso? Algum gay te obrigou a transar com ele? Você acha que corre o risco de transar com alguém do mesmo sexo? – Riu.
Miguel ficou calado apenas observando os olhos devoradores de Renato. Um soco foi dado, e puxado novamente pelos cabelos recebeu outro soco e tal ação repetiu-se quatro vezes. Seu nariz sangrava.
_ Então você acha que um gay não é homem de verdade, certo?
_ Vai se foder... – e percebendo que a despedida com suas esperanças estava próxima, começou a choramingar.
_ Então o que faz um homem ser homem é simplesmente o fato de ele enfiar o pau dele numa boceta? – Largou os cabelos de Miguel e foi em direção as duas moças. Puxe-lhes pelos cabelos e repetiu a mesma pergunta.
Elas ficaram caladas, pareciam tentar chorar, mas o medo não as deixava. Amordaçadas com o rosto voltado para o alto, viram a imagem de um rapaz que julgaram em suas mentes, ser bonito. Sentiram um puxão mais forte e sentiram dor. Foi cobrada a resposta delas, mas ficaram caladas.
_ É, não é a toa que são feitas de trouxas pelos caras. Não é a toa que eles querem apenas foder e mais nada. São vocês que os ensinam assim, não é? Merecem mesmo serem traídas por caras que se dizem muito homens, mas que, às escondidas, trepam com outros caras. Ou pior, julgam-se bons amigos e vão para casa de algum deles bater punheta todos juntos assistindo filme pornô. – Largou seus cabelos e foi até a mesinha após ter dado um leve chute nas costelas de Caio, o de dezesseis.
Saíram Renato e Daniel após verificarem se estavam todos mesmo muito bem amarrados. Umedeceram um pano de chão em um líquido transparente e o pressionaram sobre as narinas dos jovens que em segundos adormeceram.

2

Já estavam acordados quando viram pela janela que o céu estava dourado, sabiam que já estava anoitecendo. Tentaram, em vão, arrumar alguma forma de desamarrarem-se. Ouviram os tilintares das correntes que vinham do outro cômodo, era obvio que saíram e os deixaram trancados. Os seis olharam, em sincronia, entrarem em fila indiana, Renato, Daniel, Rafaela e pela primeira vez, fivam Digão, um rapaz de cabelos castanhos e muito curtos, olhos esverdeados, corpo muito magro e usava óculos de grau. O último trazia uma garrafa. Colocou-a sobre a mesa e sem olhar para nenhum daqueles indivíduos que estavam ali jogados no chão, saiu novamente na companhia de Rafaela.
Daniel pegou a caneca de metal que estava sobre a tampa da garrafa, colocou-a sobre a mesa e abriu o grande recipiente, encheu a caneca e deu água na boca a cada um dos enclausurados. Fazia-o com um geste solene, muito educado enxugava suas bocas e os olhavam com piedade.
Após Daniel ter terminado de matar a sede alheia, Renato chutou Miguel no peito de modo que ele caiu de costas meio desajeitado. Sentiu suas nádegas em contado com o chão frio. Aquela sensação de infância, de criança brincando com barro, deu a ele uma agradável sensação, mas logo foi substituída pela dor do rompimento. Suas calças foram puxadas até as panturrilhas, gritava e tentava se bater o máximo que podia como tentativa de conseguir qualquer fio de esperança.
_ Quer que eu chame a Rafa? – Daniel questionou levantando-se do banco.
_ Sim, sim. Por favor.
Daniel saiu e logo depois Rafaela entrou sozinha. Ela era enfermeira e se ofereceu a ajudar em casos extremos, quanto às feridas ou outras coisas. Viu que Miguel estava quase nu e teve dó dele, viu em sua face uma suplica por misericórdia.
_ O que você vai fazer?
_ Bem, vou transformá-lo em um homem de verdade, depois eu cuido do resto. Só preciso de você para fazer o estancamento de sangue e com a ajuda do Digão levá-lo daqui.
Começaram todos a gritar abafadamente, pareciam porcos prontos para o abate. Retorciam-se o máximo, mas tudo era em vão.
Rafaela pegou fitas, gazes, álcool e algumas luvas. Tinha um grande kit de primeiros socorros. Abriu uma toalha no chão próximo de Miguel que tentava a todo custo gritar. Ela e Renato vestiram um longo jaleco branco e cobriram as mãos com as luvas plásticas. Naquele momento, todos estavam desesperados, Miguel observava estarrecido. Teve sua amordaça retirada por Renato:
_ Não! O que vão fazer, pelo amor de Deus! Não, eu imploro! Se for dinheiro, não tem problema, eu arrumo, mas, por favor, eu imploro – Exclamava em meio a choros.
_ Não se preocupe, você não vai morrer. Pelo menos não é o que queremos que aconteça. Queremos que você viva.
Aquelas palavras deram, por alguns instantes, um conforto insano aos colegas que ainda estavam amordaçados. No entanto, conforto esse que se transformou em verdadeiro horror após assistirem a tal cena.
Não havia bisturis e tão pouco qualquer instrumento para cirurgias, não havia anestesias e nem complexos medicamentos. Mas havia um canivete, muito afiado, diga-se de passagem. Fora afiado por Pedro, pai de Renato.
Miguel arrepiou-se a sentir o frio da lamina em contato com seu pênis. Gritava roucamente enquanto sangue sujava as luvas, o chão, as pernas, a virilha. Seus amigos tentavam desesperadamente gritar, imploravam a Deus que fizesse alguma coisa. Rafaela tentava limpar o que era possível e depois de mutilado, fez com panos brancos e aparentemente limpos, compressas sobre o ferimento.
Miguel estava acordado ainda, pálido. Deixou ser vencido – situação que não era muito diferente desde o tempo todo em que estivera naquele lugar – Encostou suas costas no chão, olhou para o teto de telha. Estava ofegante, quando viu aquele ser, que para umas de suas amigas era maligno, aproximar-se de sua cabeça. Renato tinha uma agulha em mão, e sem cerimônia, puxou os cabelos de Miguel e furou seus olhos.
Todos ficaram indignados e horrorizados com tal comportamento. Questionavam-se como seria possível uma pessoa ser capaz de tamanha desumanidade. Rafaela apenas observou e, por alguns instantes, teve medo do amigo, mas também teve orgulho, e nem sabia explicar o porquê.
Miguel foi desacordado com o mesmo líquido usado anteriormente. Rafaela e Digão levaram aquele corpo ensangüentado e pareciam ter pressa.
_ Deixe-o próximo ao hospital, mas vejam se não tem câmeras de monitoramento. Depois liguem para o hospital e façam uma denuncia anônima de que viram um rapaz inconsciente bem próximo e precisa de ajuda. – Orientou Renato.
Em menos de uma hora, Rafaela e Digão estavam de volta e muitas coisas se passaram, e todos os cincos sofreram violências. O rapaz de vinte e quatro teve sua garganta profundamente cortada e ficou ali, no chão, já morto de olhos abertos. Uma das moças, depois de obrigada a lamber a vagina da amiga, teve sua língua e dedos decepados e seus olhos furados, e logo em seguida fora abandonada nas proximidades escuras de uma rodovia. Dessa forma, Daniel teria a certeza de que ela não falaria nada, não escreveria nada e não reconheceria ninguém nesse mundo pequeno.
O rapaz de dezesseis anos fora puxado pelos cabelos e a chutes para fora do casebre. Havia uma fogueira e parecia estarem cozinhando qualquer coisa. Tinha fome e veio a sua mente a imagem de sua mãe na cozinha, daria tudo para poder vê-la novamente e não mais sair de seu lado.
Levaram-no próximo a algumas árvores, havia um barranco íngreme e as grandes sombras, mesmo à noite, dificultavam a visão. Havia um buraco, um tanto fundo e a seu lado um caixote. Tiraram sua amordaça e o colocaram dentro daquele retângulo de madeira. Gritava muito na esperança de alguém ouvi-lo.
_ Não! Não! Por favor não! Eu não queria bater em vocês, eu na verdade não tenho nada contra os gays.
_ Eu não tenho nada contra os heteros. – respondeu secamente Digão.
Renato, momentos antes, havia forrado o fundo do caixote com um plástico preto e ajudando o amigo, colocou Caio dentro dele. Fecharam com uma tampa de madeira e martelavam todos os cantos. Gritos vinham lá de dentro.
_ Por favor! Eu sou gay! Eu também sou gay!
Ao escutarem tal afirmação, Renato e Digão olharam-se e depois olharam em sincronia para Daniel e Rafaela. Hesitaram por alguns instantes, mas continuaram. Jogaram o caixote no buraco e o fizeram sem delicadezas. Cobriu tudo com terra e camuflaram o terreno com folhas de bananeiras e outras plantas e galhos que estavam pelo chão. Renato tinha a tese de que Caio morreria sem oxigênio ou por afogamento, por isso colocou o plástico, sabia que aquela era uma região onde chovia muito. Não era possível ouvir os gritos daquele pobre adolescente, o que não significava que não estaria gritando naquele momento. (Uma dúvida paira nos meus pensamentos, será que aquele rapaz estava falando a verdade? Ou disse apenas como estratégia de fuga? Enfim, não saberemos nunca.)
Estavam cansados e pareciam não estar mais dispostos a continuar, entretanto, havia ainda duas testemunhas. A panela que estava no fogo do lado de fora do casebre, aquecia gordura. O primeiro plano de Renato e de seus amigos era de queimar suas vítimas começando de baixo para cima e até tinham colocado duas cordas em um grande galho de árvore para pendurá-los de ponta-cabeça.
Felizmente o plano foi deixado de lado, queriam acabar logo com tudo aquilo. Estavam todos dentro do casebre, com exceção de Digão que sempre se mantinha como sentinela. Cercavam Camila e  Kaique.
_ O que vamos fazer com eles? – perguntou Daniel.
_ Não sei, e se fizéssemos o mesmo que fizemos com a outra garota e, com ele, também cortássemos seu pau? – Rafaela sugeriu em tom de interrogação.
_ Não, acho melhor não, vai dar muito trabalho, sem falar no sangue todo. E nesse exato momento a polícia deve estar de cautela para ver se encontra qualquer coisa suspeita. O carinha que vocês levaram para o hospital, pode estar acordado agora, não cortamos sua língua e ele pode muito bem falar o que aconteceu. Ele só não sabe onde estamos.
_ Vamos soltar eles?
_ Não sei. – Renato parecia cansado e com preguiça.
_ Mas se soltarmos ele vão correndo para a polícia.
_ Não precisamos no preocupar com isso. Não podemos ser presos, amanha é eleição. Só se formos pegos em flagrante. Negamos tudo e mesmo se confessarmos, ainda não podem nos prender, só se arrumarem outros crimes cometidos antes dos dois dias que antecedem as eleições. – Renato informou enquanto sentava na cadeira de plástico.
_ Precisamos ser rápidos. – Advertiu Daniel.
Renato olhou para os dois sobreviventes e com um tom de voz suave e pausadamente disse:
_ Vocês pediram para eu ser homem, de fato não pedem, ordenam de forma agressiva como se os gays não fossem capazes de serem homens da forma que vocês acreditam que devam ser. Pois bem, creio agora que vocês estão certos de que eu sou homem. E devem estar certos também que as diferenças existem e sempre existiram. O fato é que hoje se tem mais conhecimento e muitos não se escondem mais atrás de casamentos de fachada, apesar disso ainda ser muito freqüente. Vejam bem, eu ainda não sei qual o complexo de vocês dois e também fiquei sem saber o da sua amiga e esse seu amigo. – Apontou para o corpo que estava ao lado dos dois. – Aquele seu amigo, o que eu levei daqui, agora pouco, disse pra gente que ele era gay. Ele era gay?
Os dois balançaram negativamente a cabeça e franziram a testa. Renato continuou:
_ O mais machão, nem preciso falar qual o complexo dele, se bem que ele deve ter vários.
Naquele momento, Renato percebeu que perdeu o motivo para toda aquela ação, perdeu a finalidade e nem sabia mais para quê. Levantou com o canivete em mão e calmamente cortou a garganta de ambos.
Recolheram seus instrumentos, jogaram o óleo quente, limparam as coisas que poderiam ter suas digitais. Queimaram as luvas, peças de roupas, tênis, o consolo e outros pertences, esperaram queimar até o fim para certificarem-se que não sobrariam indícios.
Caminharam, Renato, Daniel, Rafaela e Digão, passaram próximos a um lago onde jogaram as armas brancas. Telefonaram para Seu Pedro e, escondidos, o esperaram próximos à rodovia. Foram deixados cada um em suas casas.
Na mesma noite, circulava na mídia um atropelamento de uma moça que tivera seus olhos furados e tentava pedir ajuda quando teve seu tronco esmagado por um caminhão. No dia seguinte, a mídia e a sociedade tiveram breve conhecimento dos fatos. Era dia de eleição e as pessoas não deram muito crédito à história. À noite, só se via nos canais a contagem de votos.
Quatro dias depois da manifestação cidadã, policiais encontraram no casebre os três corpos e procuravam por um adolescente de dezesseis anos. Contava-se agora, a história. E a identidade do único sobrevivente mantinha-se guardada. Repórteres vasculhavam por informações feitos cães de rua à procura de comida na lixeira e, aos poucos, davam notícias esclarecedoras. A polícia ainda não tinha pistas concretas dos criminosos, mas sabia apenas algumas características.
Gustavo falecera e tal notícia foi dada pela mídia que relacionou o caso ao agressor que, agora, também se tornara vítima. Opiniões dividiam-se a respeito do caso que era visto pela polícia como algo pitoresco. No entanto, não foi informado o nome de Miguel e nem que ele precisaria fazer algumas reconstituições. Sabemos que nada será como antes para ele. Até o momento, não encontraram Caio.
Enquanto isso, a sociedade continuava. A ela eram apresentadas novas histórias que, dia após dia, seriam aos poucos esquecidas pelos coadjuvantes.

Samir S. Souza
Publicado no Recanto das Letras em 13/12/2010
Código do texto: T2669467


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